Mulheres, Além Março

O pessoal do trabalho, não; mulheres que trabalham e homens que trabalham

Segurança não é uma dimensão absoluta. Há quem sinta muito medo ou medo nenhum em uma mesma circunstância. Diante de uma afirmativa como esta, o mais comum é afirmarmos que medo é de cada um, que se trata de uma sensação individual relacionada à história de vida de cada pessoa, aos dramas particulares, à estruturação emocional; enfim, aos contornos subjetivos dos sujeitos.

Correto? Sim e não. Sim, se a perspectiva de gênero integrar este pacote existencial. Faz pouco tempo fui de Cruz das Almas para Salvador de ônibus. Era sábado e eu saí de casa antes das 4 horas da manhã, visto que havia comprado passagem para às 4h15mim. Meu marido me levou para a rodoviária e esperou a partida.

Beijos e abraços apaixonados e o desejo de reencontro que já seria no dia seguinte. Poucas poltronas ocupadas. Éramos duas mulheres e dois homens viajando. O motorista liga o motor, aumenta o volume do rádio, que eu depois pedi para baixar e ele assim o fez. Pegamos a estrada. O motorista havia comentado com meu marido que naquele horário quem viajava era “o pessoal do trabalho”.

Mas o que eu não sabia e só fui saber à medida que avançávamos pela BR 101 e BR 324 é que “o pessoal do trabalho” nem precisa mais pedir para o ônibus parar, ele, o motorista, já sabe onde fica cada pessoa à sua espera, aí é só ele pausar, abrir a porta com um sorriso, dar “bom dia”, a pessoa entrar, um assunto qualquer gentilmente ser desenvolvido entre ele e ela e a viagem prosseguir.

Mas o que eu também não sabia e só fui saber ao passo que o sol se encorpava e o amanhecer iluminava as janelas e clareava tudo, é que “o pessoal do trabalho” não é assim, digamos, somente o “pessoal” do trabalho. Afinal, há uma diferença quando esse pessoal é uma mulher que trabalha, ou um homem que trabalha.

Notei que, quando era uma mulher, nenhuma estava esperando o ônibus sozinha; todas, absolutamente, todas estavam acompanhadas ou do pai, ou do filho, ou do marido, ou do amigo, ou do vizinho. Como tenho lentes líricas-literárias para a vida, num primeiro momento, traduzi o que eu estava a perceber como sendo uma cena de amor aqui, outra de companheirismo ali e assim sucessivamente.

Mas, antes do segundo pedágio do percurso, alguns outros pensamentos já estavam a me rondar. Incontestavelmente, eu via que a situação de espera do “pessoal do trabalho”, quando era uma mulher, era uma, quando era um homem, era outra. Neste caso, eles estavam sozinhos, sem parcerias. Solidão? Talvez. Mas também a possibilidade de que não se sintam inseguros na rodovia para aguardarem o transporte chegar. Este palpite é bem plausível, sabemos.

Pode ser que adorassem a ideia de terem alguém ali com eles a partilhar os minutos e poderem conversar e rir e por aí vai. Mas ter alguém ao lado “protegendo-o” de alguma ameaça não parece ser uma condição para eles cumprirem seu compromisso laboral, compreendem? Se tiverem uma parceria, ótimo, mas se não, muito provavelmente não deixem de sair, não sejam obrigados a desistirem de ir. Em síntese: nestas circunstâncias, o medo não é uma variável.

Mas, e quando se é mulher? Será que ela se sente segura para, sozinha, antes das cinco horas da manhã, sair de casa nos arredores das localidades que estão no trecho entre Cruz das Almas e Salvador? Será que é tranquilo organizar a cada manhã uma “solução de proteção”, a qual parece invariavelmente precisar envolver um homem que deve assegurá-la de que nenhum outro homem vá importuná-la porque ele está com ela e, por isso, ela não corre risco?

O que sente uma mulher sozinha à espera do ônibus, antes do dia amanhecer, na estrada? O que a povoa? O que a assusta? Quantas deixam de aceitar um trabalho que exija sair muito cedo de casa porque não têm quem vá com elas até o ponto de ônibus e lá ficar? Que olhar um homem desprende para uma mulher sozinha na estrada?

Esses e outros questionamentos seguem em mim, interrogações que devem ser feitas principalmente por quem insiste em achar que já existe equidade de gênero. Não, não há, e isto fica visível a todo o momento, isto grita a todo instante; basta pegarmos um ônibus de Cruz das Almas para Salvador, antes das cinco horas da manhã, e observar com honestidade o que se desenrola no caminho com o “pessoal do trabalho”; Ops, com os homens e as mulheres que trabalham.

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**Sarah Roberta de Oliveira Carneiro (sarah.palavra@gmail.com) é jornalista, escritora, dançarina e doutora em Ciências Sociais. Participa das ações do Coletivo Jacinta Passos. É também professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e presidenta da Academia Cruzalmense de Letras (ACL). Siga: @resistenciafeministacda/

4 Comentários

  1. Tema necessário. A autora consegue abordar um tema tão relevante e sério com leveza e poesia. A vida é dura, mas a poesia alivia o fardo. Parabéns, Sarah pelo belo texto.

  2. Quanta beleza nessa narrativa tão necessária, tema que afeta nós mulheres diariamente. Seu sensível olhar em trânsito, Sarah, é uma forte convocação social importante! Amei o texto, bjs

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